O mito de Sísifo: um mito sobre o homem que trabalha
- Rayla Araújo
- 10 de jun. de 2019
- 11 min de leitura
Atualizado: 2 de jul. de 2020

O homem moderno vê-se rodeado de tarefas, afazeres, compromissos e trabalho por todos os lados. Há um momento para uma pausa? Há um momento em que poderá descansar ou o abrir e fechar de olhos noturno passará como um segundo e o novo dia chegará e tudo voltará a se repetir? O homem moderno pode questionar-se se a existência não passará de um enfadonho ciclo de repetições...
Encontramos na mitologia grega um mito que fala sobre as relações do homem com o trabalho: estamos falando do mito de Sísifo. É claro que, existem inúmeras maneiras de encararmos este mito, e como ressalta KAST (2017) sempre que atribuímos algum adjetivo ao falar de um mito já está implícita uma interpretação.
O enfoque deste texto é olhar o mito de Sísifo sob a perspectiva da relação do homem com o trabalho de uma forma simbólica e a influência de aspectos como a esperança e a desesperança na execução deste trabalho. Também nos interessa falar sobre o sentido de tal trabalho e como isso contribui para o desenvolvimento da personalidade do homem, em outras palavras, como contribui para o seu Processo de Individuação.
Para começar, é importante entendermos a origem da palavra trabalho. A palavra trabalho, segundo o Dicionário Etimológico - Etimologia e Origem das Palavras:
[...] vem do latim tripalium, termo formado pela junção dos elementos tri, que significa “três”, e palum, que quer dizer “madeira”.
Tripalium era o nome de um instrumento de tortura constituído de três estacas de madeira bastante afiadas e que era comum em tempos remotos na região europeia.
Desse modo, originalmente, "trabalhar" significava “ser torturado”.
[...]
A partir do latim, o termo passou para o francês travailler, que significa “sentir dor” ou “sofrer”. Com o passar do tempo, o sentido da palavra passou a significar “fazer uma atividade exaustiva” ou “fazer uma atividade difícil, dura”.
Só no século XIV começou a ter o sentido genérico que hoje lhe atribuímos, qual seja, o de "aplicação das forças e faculdades (talentos, habilidades) humanas para alcançar um determinado fim" [...] (TRABALHO, 2008).
Entendido a evolução do conceito “trabalho” podemos avançar em nosso texto. Sísifo é descrito em a Ilíada (6, 152) como o mais astuto e esperto dos homens (HOMERO, 2015). Foi condenado a rolar eternamente uma pedra até o cume de uma montanha sem jamais, porém, conseguir alcançar seu objetivo: pouco antes de chegar ao topo a pedra desliza para baixo, fazendo com que ele recomece sua exaustiva tarefa. O motivo do castigo foi desafiar os deuses ao tentar ludibriar a morte. Foi a sua paixão pela vida que lhe outorgou o castigo eterno, como ressalta CAMUS (2018): “é o preço que se paga pelas paixões desta Terra” (p. 122).
Em seu livro Sísifo: vida, morte e renascimento através do arquétipo da repetição infinita, KAST (2017) endossa nossa afirmação de que o mito de Sísifo é um mito sobre o homem que trabalha. A autora entrevista algumas pessoas de diferentes idades e lhes pergunta o que elas associam à Sísifo. Ao final, fica claro que todos associam Sísifo com o trabalho. A possível explicação para isto, talvez seja a expressão “trabalho de Sísifo” conhecida em nossa língua e usada quando queremos nos referir a uma tarefa repetitiva, exaustiva e/ou inútil. Contudo, nem todo trabalho é um “trabalho de Sísifo” ou melhor, nem todo trabalho precisa ou deve ser.
Os mitos segundo Jung, são “[...] principalmente fenômenos psíquicos que revelam a própria natureza da psique” (SILVEIRA, 1997, p. 114), e é através do estudo dos mitos que podemos compreender algumas das múltiplas facetas do comportamento humano, pois os mitos estão presentes em tudo quanto fazemos na vida diária, eles expressam sempre “[...] algumas esperanças e alguns medos básicos específicos” (KAST, 2017, p. 12). Como nos diz BOECHAT (2009): “A psique tem a capacidade natural e espontânea de produzir imagens mitológicas, que são imagens arquetípicas, nas mais variadas situações do cotidiano.” (p. 13). O mito é, segundo Campbell o material do nosso ambiente, da nossa vida e como uma mitologia que é viva, ela lida com tudo o que nos envolve dentro de dado contexto, momento histórico, época (CAMPBELL, 2015). O mito jamais morre, pelo contrário, atualiza-se constantemente. Nas palavras de Jung “o mito não é novo, é antiquíssimo, mas uma nova versão, uma nova edição dele, uma nova interpretação, caracteriza a nova época.” (JUNG, 1977, p. 330). O pensamento da autora Verena Kast é consoante com o de Jung ao falar que há sempre uma interpretação subtendida para o mito cada vez lhe atribuímos algum adjetivo.
Em seu livro O mito de Sísifo, Camus (2018) vê Sísifo como “proletário dos deuses” (p. 123), que conhece sua miséria, que tem consciência de seu destino, mas que também o despreza. Kast (2017) sugere uma interpretação diferente. Sísifo ganha um ar de esperança e isso o ajuda a suportar sua pena. Seu trabalho duro não mais é visto como inútil ou sem sentido, mas repleto de possibilidade de ressignificação. O herói de Camus reconhece a falta de sentido na exaustiva tarefa eterna, todavia continua executando-a; o Sísifo de Kast lida constantemente com a desilusão e o fracasso, mas persevera. Ele não se rende, encara a pedra outra vez e recomeça a subida. A esperança faz com que Sísifo não apenas suporte, mas encare seu destino “[...] de modo a arrancar sempre da morte um pouco de vida.” (KAST, 2017, p. 49).
Podemos notar que a principal diferença na interpretação do mito pelos dois autores citados, ou melhor, o aspecto fundamental que distancia as duas interpretações é a maneira como a esperança é encarada. Camus rejeita a esperança, antes a considera algo ilusório e nos indaga sobre Sísifo “O que seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo?” (CAMUS, 2018, p. 123). A rejeição à esperança é o que permite Sísifo viver o presente de maneira intensa, com paixão, sem esperar por algo além do que a sua condição existencial absurda pode lhe oferecer. O que ele tem é o aqui e agora. Aceitar esta condição, porém, não quer dizer estar desesperado. No momento em que se adquire consciência do próprio destino, Sísifo torna-se dono dele. Seus dias lhe pertencem. (CAMUS, 2018).
Para Kast, a esperança desempenha um papel significativo no mito de Sísifo. Ela considera a esperança e seu anverso, a desesperança, como emoções centrais da vida humana. Como emoção central, a esperança nos levanta, abre nossos olhos para o futuro, busca mudança, alguma mudança criativa, “[...] pois a esperança é o anseio de viver no amanhã, o debruçar insensato no futuro” (HILLMAN, 2011, p. 171). No entanto, a esperança pode também nos enganar, isso acontece quando “só esperamos mudanças e não mudamos aquilo que no momento deve ser mudado” (KAST, 2017, p. 47). Essa atitude muitas vezes acaba por difamar a esperança.
A esperança de que Kast fala não é a de aguardar apreensivamente que algo aconteça, mas uma esperança que transcende o aqui e agora, onde mora alguma segurança, onde podemos encontrar a força para empreender algo confiando que há possibilidade de mudança ou que ao menos a nossa perseverança não é vã, que existe algum sentido. A autora não vê Sísifo como um homem sem esperança (ou totalmente sem), mas também afirma que jamais saberemos se de fato Sísifo era um homem que tinha ou não esperança. (KAST, 2017). O mito está sempre aberto às mais diversas interpretações.
A repetição eterna de um trabalho árduo onde o objetivo jamais pode ser alcançado nos afigura um trabalho inútil: eis o castigo dos deuses a Sísifo. Mas o que fazer com este destino que aparentemente já o tem sob o seu domínio? Submeter-se a ele? Lutar contra ele? Para Camus não há um sentido, mas consciência da condição existencial, e isso basta: “A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem” (CAMUS, 2018, p. 124). Sísifo, apesar de não ter êxito em sua tarefa, é persistente. Ele faz o que é “[...] humanamente possível na relação com a tarefa de vida a ele determinada [...]” (KAST, 2017, p. 58). Se enxergarmos a persistência de Sísifo como algo ligado à ideia de que existe algum sentido, poderemos extrair de seu caminho tantas vezes percorrido valiosas experiências. Nosso herói passa por desilusões e fracassos, tem esperanças, expectativas, sente-se cansado, desanimado, mas recupera seu vigor para continuar. Sísifo consegue em algum momento descansar? Os autores Camus e Kast questionam-se sobre o “Sísifo que desce a montanha”. No mito só nos é falado do Sísifo que sobe a montanha, o Sísifo que empenha forças para rolar a pedra. Mas é o momento da descida que – como sugerem os autores – parece ser o momento de descanso e reflexão. Para Camus, a descida é “[...] a hora da consciência” (p. 122). Kast tenta imaginar os sentimentos despertados em Sísifo durante a descida, como ele interage com a paisagem em volta agora que seu rosto não está mais grudado à pedra...
Quando nos ocupamos de algum mito, na verdade estamos nos ocupando com as nossas experiências existenciais que estão espelhadas nesse mito. Os mitos têm o poder de provocar essas associações. (KAST, 2017). Quando nos ocupamos do mito de Sísifo, estamos buscando entender de alguma forma a nossa própria relação com o trabalho, com nossas penas, frustrações, nossas esperanças, expectativas, nossa busca de sentido. Os mitos estão sempre presentes, sempre essenciais e sempre expressam emoções básicas da alma humana (BOECHAT, 2009), são uma expressão do mundo e da realidade do homem (BRANDÃO, 2015). Os arquétipos são os moldes básicos para a formação dos mitos (SILVEIRA, 1997) e encontram-se nas profundezas do inconsciente. A esse respeito, nos diz JUNG (2015): “[...] o inconsciente contém não só componentes de ordem pessoal, mas também impessoal, coletiva, sob a forma de ou arquétipos” (p. 26). A natureza dos mitos é efetivamente coletiva, pois tem como base os arquétipos que vivem no nosso inconsciente coletivo, onde não existe nada de individual ou único nesse nível. Todas as pessoas têm os mesmos arquétipos e instintos (STEIN, 2016). Jung fala que o arquétipo é “presença eterna” (2012, p. 239), podemos dizer o mesmo do mito, visto sua base arquetípica. O mito é presença eterna.
Jung chamou de Individuação o processo natural de desenvolvimento da personalidade pelo qual passam todos os indivíduos. Em seu livro Tipos Psicológicos, JUNG (2013a) nos diz:
A individuação, em geral, é o processo de particularização do ser individual, e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. (p.
467)
Comum a todos os indivíduos, este é um processo de amadurecimento e transformação. “A individuação coincide com o desenvolvimento da consciência que sai de um estado primitivo de identidade [...] significa um alargamento da esfera da consciência e da vida psicológica consciente.” (JUNG, 2013a, p. 469). Jung também nos diz que o objetivo do processo de individuação é fazer com que o indivíduo se torne quem verdadeiramente é. Para tal, o indivíduo precisa estar disposto a confrontar sua e relacionar-se com suas imagens internas para finalmente estar em contato com o seu centro, com o . A consciência e a individuação caminham juntas no desenvolvimento de uma personalidade, pois a formação de uma mente consciente também marca o início do processo de individuação. O caminhar da individuação é feito de confrontos – muitas vezes fastidiosos – porém necessários para a integração do inconsciente no consciente, para a integração dos componentes inconscientes da personalidade. (JUNG, 2013b). O processo de individuação se dá enquanto se dá a vida. Não é um “lugar” onde temos de chegar, mas uma jornada que temos de empreender. É enriquecido com cada nova experiência, pois elas também são responsáveis por parte significativa do desenvolvimento da personalidade.
O mito de Sísifo como mito do homem que trabalha, – e por trabalho aqui estaremos nos referindo a tudo aquilo que é feito de forma repetitiva, contínua, a fim de atender nossas necessidades mais básicas – e diante do que foi exposto nos traz algumas reflexões. Jung fala sobre descobrir o mito pessoal, o mito pelo qual se vive e decidiu encarar isso como sua maior tarefa. (JUNG, 2016). Acredito que podemos estar sob a influência de alguns mitos em diferentes momentos da vida e o mito de Sísifo se apresenta a nós na situação cotidiana do trabalho, do ter que executar alguma tarefa repetitiva, cansativa ou sem sentido.
No mito de Sísifo, ele jamais tem êxito. O seu objetivo jamais é alcançado. Mas isso é apenas uma das interpretações para o mito. Sísifo foi amaldiçoado a fazer sempre e de novo um trabalho árduo e sem sentido. Sísifo não tem escolha, todos os dias reencontra sua pedra e empreende novamente a subida, “as pessoas sempre reencontram seu fardo.” (CAMUS, 2018, p. 124). Sísifo, assim como o homem moderno “tem” que seguir seu destino, muitos trabalhos são indispensáveis para a manutenção da vida, e deles não podemos fugir. Mas Sísifo com sua natureza humana é livre para sentir e experimentar sua existência. O herói do nosso mito se depara com o fracasso, a frustração e pode pensar que no fundo existe apenas a inutilidade de tudo. Sentimentos semelhantes com os que nos deparamos algumas vezes ao tentar, ao insistir em algo que não parece ter futuro. Assim como Sísifo, carregamos nossa pedra dia após dia, experimentando sentimentos na forçosa subida e na contemplativa descida. O relacionamento com a nossa pedra não precisa ser igual, embora a tarefa de carregá-la seja.
Se pudermos aceitar que nossos problemas principais revelem sempre um lado novo, podendo ser também, até certo ponto, retrabalhados, então ergueremos a pedra quando chegar a hora, e veremos até onde a levaremos desta vez. A relação com as nossas “pedras” se modificará. (KAST, 2017, p. 97).
O trabalho repetitivo pode até nos fatigar, mas não precisa nos vencer. Camus fala de se ter consciência do próprio destino e não de lutar contra ele, mas aceitá-lo e vivê-lo. A partir do momento que se adquire essa consciência, o homem é “dono dos seus dias”.
Podemos extrair do mito de Sísifo o sentido das coisas, não a falta dele. Pensar em Sísifo como um homem forte, determinado, e acima de tudo corajoso nos ajuda a pensar nossa condição humana. Sísifo tem qualidades que também temos ou que podemos desenvolver. Prefiro pensar que algo motivava Sísifo, que não somente a condenação o forçava a executar o trabalho. CAMUS (2018) diz que “é preciso imaginar Sísifo feliz” (p. 124), Kast diz que a melhor palavra seria “digno”. Eu prefiro usar a palavra corajoso. Sísifo desde antes do castigo se mostrou corajoso ao lutar por um pouco mais de vida desafiando a autoridade dos deuses, e após o castigo ao cumpri-lo com resignação.
A questão que podemos levantar agora é: o que tudo isto tem a ver com a individuação do homem? Sem mais delongas, podemos dizer que pelo fato da individuação se dá juntamente com a vida, durante todo o nosso percurso – que é enriquecido a cada experiência que vivenciamos – está presente também na “subida – e descida – de Sísifo” de cada um. Os sentimentos e emoções experimentados, as imagens mitológicas revisitadas, tudo isso nos faz ter uma consciência maior de nós mesmos. A dor, a frustração, as expectativas, a coragem, o vigor... tudo isso é capaz de dar sentido à vida de um homem. Há um propósito, um sentido? Talvez descubramos que o propósito não é alcançar o cume, mas percorrer o caminho aprendendo sobre o próprio caminho, sobre a pedra, sobre si mesmo. Não é esse um dos objetivos da individuação, autoconhecimento!? Essa é a luta de todo homem. Segundo JUNG (1977): “[...] sua vida real é onde está a sua luta.” (p. 36). Nosso maior trabalho diário é a construção de nós mesmos. A mesma pedra será rolada pelo mesmo caminho, mas sempre poderemos ter novas experiências desde que estejamos abertos para elas.
REFERÊNCIAS
BOECHAT, W. A mitopoese da psique: mito e individuação. Col. Reflexões Junguianas. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega. Vol. I. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
CAMUS, A. O mito de Sísifo. 10. ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2018.
CAMPBELL, J. As transformações do mito através do tempo. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2015.
HILLMAN, J. Suicídio e alma. Col. Reflexões Junguianas. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
HOMERO. Ilíada. 25. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. V. 12 – Col. Obra Completa. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
______. Tipos Psicológicos. V. 6 – Col. Obra Completa. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
______. A natureza da psique. Vol. 8/2 – Col. Obra Completa. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
______. O Eu e o Inconsciente: Dois escritos sobre psicologia analítica. V. 7/2 – Col. Obra Completa. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
______. Memórias, sonhos, reflexões. 30. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
KAST, V. Sísifo: vida, morte e renascimento através do arquétipo da repetição infinita. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 2017.
McGUIRE, W., HULL, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1977.
SILVEIRA, N. Jung: vida e obra. 1. ed. 22. reimpressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
STEIN, M. Jung: O Mapa da Alma. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
TRABALHO. Dicionário Etimológico – Etimologia e Origem das palavras. Disponível em <https://www.dicionarioetimologico.com.br/trabalho/>. Acesso em 03 de maio de 2019.
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